A complexa tarefa de entender, combater e legislar sobre desinformação em tempos de pós-verdade

Em 2016, o Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford que publica dicionários, escolheu a palavra pós-verdade como a palavra do ano. E a definiu: "Circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal". A palavra já tinha sido usada antes, com registros desde pelo menos 1992. Mas pela primeira vez, a pós-verdade assumiu o protagonismo como fenômeno de uma era quando importa mais vencer o debate do que chegar à verdade dos fatos. E isso não deixava de marcar um novo paradigma na História das sociedades.

A complexa tarefa de entender, combater e legislar sobre desinformação em tempos de pós-verdade

Desde há pelo menos 25 séculos, pensadores, filósofos e cientistas se ocupam de questões fundamentais para um melhor entendimento do mundo e dos homens. Todos os esforços, ao longo de todo esse tempo, se concentram em prover a sociedade de instrumentos que possam ser usados para que ele chegue o mais próximo possível da verdade[1]. Nunca foi uma trajetória fácil e desde sempre, ao menos sob os olhos da filosofia e da ciência, a tarefa foi acompanhada por escolas e pensamentos que buscaram trazer este exercício para o centro do debate, partindo do princípio de que o conhecimento e a própria filosofia são orientados por um valor máximo: a verdade[2].

Quando os estudiosos da internet começaram a dissecar o tema e seus impactos na sociedade, ainda no fim do século passado - pesquisadores como o espanhol Manuel Castells, o francês Pierre Levy ou o norte-americano Henry Jenkins -, havia certo otimismo a respeito do conhecimento compartilhado com o qual a realidade digital acenava. Falava-se em "sociedade em rede"[3]  [4], em "inteligência coletiva"[5], em "cultura da conexão" e "cultura da convergência"[6] [7], todos com o viés de compartilhamento de saberes em torno de um conceito de bem comum e de verdade comum. A produção do conhecimento seria experimentada de baixo para cima e não estabelecida de cima para baixo, como historicamente as regras de poder são produzidas pelas sociedades a partir de elites privilegiadas.

A partir da primeira década do novo milênio, com o advento das plataformas de mídias sociais e dos algoritmos como mediadores de relacionamento/atenção e produtores de conhecimento em inteligência artificial, tudo mudou[8]. O processo de consumo de conteúdo e da economia da atenção ganhou um peso especial, num cenário onde qualquer pessoa pode ser, ela própria, mídia[9]. O modelo de negócios criado para determinar personas e entregar a elas conteúdos customizados baseados em suas preferências por objetos de consumo, como sapatos ou livros, passaram a ser alvos de conteúdos ideológicos e políticos, acirrando um fenômeno de polarização e criação de bolhas que parece de difícil desarme. E como a ideia é vencer o debate e não chegar à verdade, está pronto o ambiente ideal para a proliferação da desinformação como estratégia política e, consequentemente, como indústria que movimenta milhões pelo planeta[10].

Não é tarefa fácil definir e conceituar o fenômeno, mas a Psicologia e a Comunicação vêm se debruçando sobre a pergunta: por que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar mesmo sendo mentira? A indústria da desinformação utiliza várias dessas respostas como armas. Uma delas: as pessoas costumam consumir conteúdos de (des)informação tanto por razões emocionais - e até mais movidas pela emoção - quanto racionais [11]. Há também o fenômeno psicológico conhecido como viés de confirmação, que se refere à tendência de muitos de tomar como verdadeira uma informação que confirma uma crença ou opinião preexistentes. Ou seja, se aquele conteúdo vai de encontro a algo que eu penso que pode ser verdade, eu tenho mais possibilidade de considerá-lo verdadeiro, ainda que ele não seja. Outros pontos são: falta de pensamento crítico sobre o que é recebido; impaciência ou falta de atenção sobre o conteúdo; preguiça em fazer reflexões sobre os assuntos (o que leva a pessoa a preferir soluções simples para problemas complexos) e o popular "efeito ilusório de verdade", que se refere ao fenômeno em que quanto mais somos expostos a certas informações, maior a probabilidade de acreditarmos nelas[12].

A jornalista Michiko Kakutani, ex-crítica literária do jornal "The New York Times" por quatro décadas, define assim a razão pela qual as pessoas aceitam rapidamente informações que sustentam suas crenças e rejeitam aquelas que a contestam[13]: "As primeiras impressões são difíceis de serem descartadas, porque há um instinto primitivo de defender o próprio território e porque as pessoas tendem a produzir respostas emocionais em vez de intelectuais ao serem questionadas e são avessas a examinar cuidadosamente as evidências”. O autor e professor de direito Cass Sunstein observou em "A era do radicalismo" que dinâmicas de grupo apenas enfatizam essas tendências: “o isolamento está relacionado com frequência a uma fonte de informação limitada (e geralmente informação que reforça visões preexistentes) e um desejo de aprovação por seus pares".

É nesse caldo de complexidades que nasce o fact-checking e ganha impulso a educação midiática e digital como conhecemos hoje. Não são práticas novas. A primeira fazia parte do processo de produção da reportagem, mas caiu por terra com o encolhimento das redações provocado justamente pela digitalização da mídia, em fins do século passado, e a necessidade de publicação imediata de conteúdos, o que precarizou a cadeia de produção. A segunda surgiu como conceito na esteira da popularização do rádio, da TV e do cinema ainda na década de 60 do século XX, com o apoio da UNESCO, e buscava alertar as pessoas diante do que se acreditava ser "manipulações políticas" decorrentes do consumo sem questionamentos dessas mídias[14].

A necessidade e relevância de tais práticas só cresceram com o fenômeno da internet, a emergência das redes sociais e a epidemia de desinformação que assolou o planeta no século XXI, tanto que, em 2009, a plataforma de checagem de fatos americana PolitFact ganhou o Pulitzer, o maior prêmio de jornalismo dos EUA. Em 2015, nasce a International Fact-Checking Network (IFCN), a rede mundial de checadores de fatos que hoje reúne mais de 100 plataformas de checagem do mundo inteiro em torno do desafio de trazer a verdade para o centro do debate público novamente e, com isso, resgatar os esforços que deram o tom do desenvolvimento científico e do conhecimento humano desde sempre. A rede possui um código de princípios ao qual todos os membros precisam aderir se quiserem fazer parte da organização. Este código compreende uma série de compromissos que as plataformas cumprem para promover a excelência na verificação de fatos dentro do espírito de que a transparência e o apartidarismo são instrumentos poderosos do jornalismo de prestação de contas. Estes parâmetros garantem que os checadores possam ser auditados duas vezes: pela IFCN e pelo próprio leitor.

No mesmo ano, algumas das principais plataformas de checagem do Brasil ganharam vida, como a Lupa, que é hoje a única no país a atuar em duas frentes regulares de combate à desinformação: jornalismo, com ações de produção de conteúdo baseado em verificação de fatos, e educação midiática e digital, baseada em projetos de educação para o desenvolvimento do pensamento crítico e entendimento do conteúdo de mídia, das redes sociais e da internet. Mas o desafio é gigante, não apenas no Brasil, mas em outros países que enfrentam governos que menosprezam a verdade evidenciada dos fatos e apostam em narrativas manipuladas ou estratégias de desinformação, como foi o EUA na era Trump ou são a Turquia de Recep Erdogan, a Rússia de Vladimir Putin, a Hungria de Viktor Orbán ou a China de Xi Jinping - para não se acusar o autoritarismo populista desinformativo e manipulador de direitista ou esquerdista.

No Brasil, o dilema ganha contornos ainda mais tensos quando se observa no Congresso Nacional uma tentativa de legislar sobre o tema desinformação menos com a preocupação de se minimizar o estrago da prática e mais com a tentativa de classificar tudo que circula a meu respeito - no caso, dos congressistas - como "notícia falsa" e tudo que circula a respeito dos outros como "liberdade de expressão". O projeto de lei nº 2.630/2020, mais conhecido como o "PL das Fake News", encontra-se hoje parado na Câmara dos Deputados, tem 42 artigos, ganhou o pretensioso nome de "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet" e apesar de consumir anos de discussão com o nobre objetivo de diminuir a disseminação de notícias falsas e aumentar as punições aos seus responsáveis, conseguiu a façanha de ser criticado por praticamente todos os envolvidos. Governistas acham que o texto pode tirar do ar conteúdos desinformativos criados e compartilhados pelo próprio presidente da República e seus apoiadores. A oposição teme que o projeto acabe servindo para que o conceito seja manipulado para que críticas ao governo sejam censuradas. Organizações da sociedade civil têm medo que a definição de desinformação seja tão enfraquecida a ponto de qualquer discurso ter que ser tolerado em nome da liberdade de expressão, incluindo os mais intolerantes ou de ódio. As plataformas de redes sociais não querem uma legislação que, de alguma forma, se intrometa em seus modelos de negócio. Corporações desejam entender o que poderão fazer com dados coletados de consumidores e que, ao fim e ao cabo, determinam marketing e outras políticas de produção e vendas. Associações de consumidores entendem que possuem direito aos seus dados pessoais diante de plataformas que os usam em seus modelos de monetização e que isso pode estar em jogo.

PL das Fakenews

O PL 2630/2020 é uma proposta legislativa que pretende regulamentar o uso de plataformas de mídias sociais. O Projeto visa a criação de medidas de combate à disseminação de conteúdos falsos nas redes sociais e nos serviços de mensagens privadas, mas vem gerando receios de manipulação, censura e do esvaziamento dos conceitos de desinformação e liberdade de expressão, gerando uma maior abertura para discursos de ódio.

Atualmente, o texto-base do Projeto foi aprovado pelo Senado, com 44 votos a favor, 32 contra e 2 abstenções. O PL segue ainda para votação na Câmara dos Deputados.

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Afinal, até agora, as saídas sugeridas no PL das Fake News seguem a lógica de como as pessoas buscam soluções para as grandes questões que as afligem: na base das respostas simples para problemas complexos

No meio dessas discussões, hubs de combate à desinformação como a Lupa, que estuda e trabalha tanto o conteúdo jornalístico da checagem dos fatos quanto o educacional midiático e digital, temem uma lei perdida em conceitos pouco claros (porque o tema ainda é de difícil definição), decisões nada transparentes (a tia ou tio do WhatsApp vão para a cadeia tanto quanto disseminadores profissionais de desinformação?) e medidas muito punitivas e pouco educativas. Afinal, até agora, as saídas sugeridas no PL das Fake News seguem a lógica de como as pessoas buscam soluções para as grandes questões que as afligem: na base das respostas simples para problemas complexos, uma prática que, como vem sendo comprovada por pesquisadores e estudiosos da desinformação, tem pouquíssima chance de dar certo.


Este artigo faz parte da publicação “A democracia aceita os termos e condições? Eleições 2022 e a política com os algoritmos”, disponível para download gratuitamente aqui.


Referências bibliográficas:


[1] RÊGO, Ana Regina; BARBOSA, Marialva. A construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2020.

[2] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2011.

[3] CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede – A Era da Informa o: economia, sociedade e cultura. Vol.1. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

[4] CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

[5] LEVY, Pierre. A inteligência coletiva. São Paulo: Ed. Folha de S. Paulo. 2014.

[6] JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

[7] JENKINS, Henry; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da conexão: criando valor e significado através da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014.

[8] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[9] MIZUKANI, Pedro et al. Mapeamento da mídia digital no Brasil. Rio de Janeiro: Edição FGV

[10] D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra dos fatos em tempos de fake news. Barueri: Faro Editorial, 2018.

[11] GRAVES, Lucas. Deciding what's true: the rise of political fact-checking in American Journalism. New York: Columbia University Press, 2016.

[12] MATLIN, Margaret W. Psicologia cognitiva. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2004.

[13] KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.

[14] GRIZZLE, A. et al. Media and information literacy curriculum for teachers. New York: UNESCO, 2011